Na Paraíba, o mapa não é mais uma geografia estática; é um roteiro de vinda. O Censo 2022 bateu o martelo: de 25 mil indígenas em 2010 para pouco mais de 30 mil em 2022. 20% de salto, mas a euforia do “oba, estamos crescendo” morre na primeira esquina da periferia. Porque o boom não é de berço, é de retorno, de migração e, sobretudo, de um acerto de contas com o espelho. O “extinto” resolveu voltar para a vitrine, mesmo que para constrangimento do curador.

O Kariri e o Tapuia-Tarairiú, que a historiografia tratou como espectros elegantes, reaparecem agora no balcão da autoafirmação. E o palco não é mais a aldeia mítica. É a cidade. Praticamente dois terços desse crescimento absoluto ocorreu entre o concreto, longe da cerca oficial da Terra Indígena. O centro de gravidade mudou: 85,3% do aumento pulou a cerca e se instalou no mundo “de fora”. O indígena, agora, mora na cidade, onde as políticas públicas ainda o procuram com binóculos de safári, na direção contrária.

A Paraíba não tem apenas seus territórios, tem seus contos de fadas estatísticos. Marcação e Baía da Traição, com seus 88% e 86% de população indígena, parecem ilhas de pureza identitária, o poster child da permanência cultural. Mas o conto real está nos 28 mil que não cabem mais no imaginário do cocar: é a “aldeia estendida”, espalhada por calçadas, bairros e, ironicamente, em cidades-fantasma para os orçamentos de saneamento.

A gente imaginava o indígena no cativeiro da aldeia? A Paraíba o reposiciona: ele está no centro de João Pessoa, no processo de cidadania que se reafirma na fila do banco, e com a gaita-solar esticada. A cidade é palco e host simultaneamente, um anfitrião com as contas atrasadas. O prédio de vidro quebrado, com elevador, a metáfora da subida da identidade que ainda tem a escada soltando, resume a situação.

O Brasil até pode celebrar o salto para 391 etnias e quase 500 mil falantes de línguas nativas, mas o nó na Paraíba (e no país) é o silêncio. Mais gente se declara, mas a proporção de falantes da língua ancestral caiu de 37% para 28% no país. O território demarcado, sim, funciona como redoma, como terapia intensiva cultural. Fora dele, porém, a migração e a dispersão impõem um contrato de adaptação, e não de permanência. O asfalto mastiga dialetos.

O número é bom, o salto é bonito. Mas o IBGE também registrou que quase 70% dos indígenas em domicílios particulares no Brasil convivem com a indecência do saneamento básico falho. Crescer em número não é sinônimo de infraestrutura ou de poder político. A nova geometria exige um novo manual.

O velho esquema “terra + aldeia” é insuficiente para a mulher jovem indígena que reafirma sua identidade na mesa de bar improvisada. A questão, portanto, deixou de ser se temos indígenas e passou a ser: como o Estado Paraibano (e a cidade hostil) vai viver essa identidade que se veste de subversão leve? A Paraíba, ao que parece, lançou-se num remix étnico. E o prefácio estatístico mal disfarça a urgência de um livro real, que precisa ser escrito não com promessas, mas com esgoto tratado, água encanada e respeito no asfalto.






