Do entulho ao plenário: o diálogo atemporal entre a Marcenaria Olinda e o ‘Marxista Cinético’ Abelardo da Hora na Funesc

​Quando a memória da madeira encontra o DNA da luta política e estética em Pernambuco.

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​Recife, o eterno palco de paradoxos, promove um encontro visual que beira o deboche da história. De um lado, a Marcenaria Olinda, que, com um senso de humor prático, transforma o que a sociedade descarta, entulho de demolição, madeiras de segunda mão, em obras de arte que são um tapa de luva na cultura do consumo. Seu lema “nenhuma árvore a menos” e a atuação nas feiras populares disfarçam um projeto de pesquisa, memória e invenção que transcende o artesanato, flertando com a escultura, a fotografia e a (sempre necessária) intervenção urbana. É a sustentabilidade elevada ao status de manifesto estético e político, uma prática ritual que reverencia o tempo lento do material.

​Do outro, o Memorial Abelardo da Hora, que, em João Pessoa, resguarda o acervo desse gigante pernambucano, cujo centenário (nasceu em 1924) é celebrado com a pompa de um estadista. Abelardo, um nome que não cabe apenas no pedestal de “um dos maiores escultores brasileiros do século XX”, era o combo completo: escultor, pintor, gravador, desenhista, bacharel em Direito e, para apimentar, militante de carteirinha do Partido Comunista Brasileiro.

Ele era o enfant terrible da arte engajada, o precursor da arte cinética que também integrava a luta pela redemocratização. Não se contentava em ser apenas vanguarda estética (fundador da Sociedade de Arte Moderna do Recife); ele usava o grotesco e o expressionismo de suas obras, como a icônica série “Os Meninos do Recife”, para denunciar o abismo social, o lodo e a lama das cidades. Sua obra é, fundamentalmente, um documento político em bronze e cimento.

O Memorial agora convida o público a se “deixar levar, flanando entre gestos, formas e ritmos que se provocam e ecoam”, num confronto de “rimas visuais”. Em outras palavras, o museu propõe uma briga de foice no escuro ou quem sabe, um duelo de gatos mestres entre a Memória do descarte (Marcenaria Olinda, que resgata a história das tábuas) e a memória da luta (Abelardo, que esculpiu a denúncia).

​A ironia reside no casamento forçado: o legado de Abelardo, que lutou pela dignidade do operário e do povo anônimo, encontra a materialidade da Marcenaria Olinda, que valoriza o trabalho manual e o resgate da matéria-prima. Ambos compartilham um DNA de crítica social, mas com séculos de distância e métodos opostos. Onde Abelardo cravou a denúncia com o peso do bronze e o engajamento de um dirigente partidário, a Marcenaria Olinda faz a sua revolução de forma mais zen, nas feiras populares, sussurrando sobre a sustentabilidade com madeiras que sobreviveram a desabamentos.​

O visitante, ao “flanar” por esse palco de encontros, é convidado a rir da formalidade acadêmica e a perceber que, no fundo, o comunista avant-garde e o artesão sustentável estão na mesma trincheira: a da subversão que transforma o invisível, seja a miséria humana ou o entulho da construção, em uma obra que incomoda e, se der sorte, faz pensar. É o reencontro do ativista do século passado com o ativista do presente, unidos pelo destino de Pernambuco e pela teimosia de fazer arte com significado.

O Projeto “Fora da Hora” abre as portas nesta sexta-feira (31) e permanece até o dia 14 de dezembro no Memorial Abelardo da Hora, no Espaço Cultural José Lins do Rego (avenida Abdias Gomes de Almeida, 800 – Tambauzinho, em João Pessoa).

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