A vingança de barromancia: o sobrado de taipa no Crato (CE) que zombou da elite e da engenharia

​Tijolo é démodé. O Cariri cearense prova que a sabedoria ancestral, vista como "coisa de pobre", constrói um sobrado onde a ciência dizia ser impossível, oferecendo lições de sustentabilidade para o século XXI.

Compartilhe o Post

​O cimento treme nas bases, e o tijolo cozido engole em seco. Após séculos de ostentação industrial, a arquitetura brasileira assiste a um retorno triunfal da Taipa, aquele barro batido que, do Norte ao Nordeste, serviu de alicerce para as primeiras casas, igrejas… e senzalas. O material, que um dia foi o pilar da elite colonial portuguesa antes de ser relegado ao triste rótulo de “moradia popular”, sinônimo de pobreza e atraso, agora se reergue como uma piada sutil contra a modernidade.

​Se a Casa de Taipa de São Vicente (1516-1520) é o marco zero da habitação brasileira, a prova cabal de que o barro tem resistência para atravessar eras, a verdadeira afronta à engenharia está fincada no semiárido cearense. No Crato, coração do Cariri, repousa um sobrado que desafia a lei da gravidade e, de quebra, o preconceito social.

O arquiteto desconhecido e a verticalização improvável

​Na década de 1950, enquanto o Brasil sonhava com concreto armado e linhas modernistas, um cidadão chamado Jefferson da França Alencar resolveu pregar uma peça nos dogmas da construção civil. No Sítio Fundão, zona rural do Crato, ele ergueu a que é considerada a primeira casa de taipa com dois andares do país.

​O feito, à primeira vista, parece uma trivialidade. Mas tente empilhar barro úmido com fibras vegetais, material notoriamente instável, para suportar o peso de um segundo pavimento sem que tudo desabe melancolicamente. A taipa, por sua natureza, não aceita grandes verticalizações sem cálculos e reforços estruturais que beiram a obstinação.

​Alencar, um mestre da engenhosidade empírica, driblou a falta de manual acadêmico. Reforçou as fundações, utilizou um madeiramento de sustentação mais robusto nas paredes e entrepisos, e, sem softwares de cálculo estrutural, simplesmente fez o barro obedecer à sua vontade. O resultado? Uma residência que virou um monumento involuntário ao saber popular e uma lição silenciosa sobre a durabilidade da inventividade sertaneja.

​A Lição Térmica do Sertão

​Para além do feito estrutural, o sobrado de taipa do Cariri oferece um conforto térmico que faz qualquer ar-condicionado de última geração parecer uma solução vulgar. As paredes espessas de terra crua funcionam como isolantes naturais, mantendo o interior da edificação agradavelmente fresco, mesmo sob o sol inclemente da região. É a sabedoria ancestral que, sem gastar um centavo de energia elétrica, resolve um problema climático que a arquitetura contemporânea só consegue remediar com tecnologia cara e poluente.

​Essa “gambiarra genial” de Alencar resistiu ao tempo e, em 2017, foi reconhecida e restaurada pelo Governo do Ceará, transformando-se no Centro de Visitantes do Parque Estadual do Sítio Fundão. Hoje, o local não é apenas um ponto turístico; é um estudo de caso prático para arquitetos e urbanistas que buscam soluções realmente sustentáveis e de baixo impacto ambiental.

​Enquanto a arquitetura high-tech se gaba de arranha-céus de vidro e aço que consomem megajoules de energia para climatização, o humilde barro cearense, com sua simplicidade bicentenária, nos lembra de uma verdade inconveniente: a solução para o futuro da habitação pode estar literalmente sob nossos pés. A taipa, banida para a periferia da construção, volta à cena provando que a verdadeira grandiosidade é ser simples, funcional e, acima de tudo, durável. E o Crato tem o sobrado para provar.

Compartilhe o Post

Mais do Nordeste On.