O Centrão, com a sutileza de um elefante em loja de cristais e a retórica de um orador em fim de feira, resgatou das gavetas empoeiradas da Câmara o projeto do Voto Distrital Misto. A bandeira oficial é nobre, quase messiânica: “barrar a entrada do crime organizado” e, de quebra, “aproximar o eleitor do seu deputado”. É um discurso sedutor que promete transformar o parlamentar em um síndico de luxo do seu distrito, finalmente responsável por aquilo que promete. No entanto, por trás da cruzada moralista é um dos mais audaciosos e transparentes jogos de poder para blindar as cúpulas partidárias.
A essência da manobra é simples: matar o “puxador de voto”. No atual sistema proporcional de lista aberta, um candidato midiático ou com votação estratosférica (os célebres “puxadores”) consegue, com seus votos excedentes, eleger um batalhão de colegas com votação irrisória. Este é o único elo de imprevisibilidade e ascensão individual dentro de um Congresso dominado por caciques.
O Distrital Misto: Duas Vagas e Um Funeral
A proposta do Distrital Misto funciona em dois tempos, exigindo dois votos do eleitor.
● Voto Distrital (a Maquiagem): Metade das vagas é preenchida pelo modelo majoritário em distritos eleitorais, onde o eleitor vota no candidato da sua região. Este é o argumento da “proximidade”, da fiscalização e da suposta inibição da facção criminosa, que, teoricamente, teria mais dificuldade em operar sob o “holofote” de uma disputa localizada. A esperança é que o eleitor passe a ter uma relação com seu deputado “mais ou menos como tem com o prefeito”.
● Voto em Lista Fechada (o Golpe de Mestre): A outra metade das vagas é distribuída entre os partidos de forma proporcional, mas preenchida por meio de uma lista pré-ordenada elaborada pela própria cúpula partidária.
É aqui que reside a genialidade cínica do Centrão. Ao abolir o voto nos “puxadores”, a reforma garante que o poder de decisão sobre quem entra (e quem fica) não será mais do eleitor, mas sim dos donos das legendas. O quociente eleitoral, hoje, beneficia o voto individualizado; no novo modelo, as cadeiras-chave, aquelas da lista fechada, serão distribuídas em ordem de preferência do partido. Em outras palavras, o sistema elimina os aventureiros e os outsiders com apelo popular, fortalecendo a casta de políticos orgânicos do sistema.
O Sarcasmo da ‘Anti-Facção’ e o Risco do Feudo
A alegação de que a reforma eleitoral é um escudo contra o crime organizado é, no mínimo, um exercício de otimismo ingênuo ou de sarcasmo planejado. Críticos apontam que o novo desenho pode, ironicamente, consolidar feudos eleitorais. Facções criminosas não são barradas por um redesenho de mapa; elas prosperam justamente na ausência do Estado. A criação de distritos estanques pode, na verdade, facilitar a “coerção territorial”, onde um grupo criminoso focado consegue eleger seu candidato com muito mais eficiência em uma área menor e controlada, ao invés de dispersar votos por um estado inteiro.
Além disso, a crítica mais afiada recai sobre a possibilidade de “gerrymandering”, a manipulação geográfica dos distritos para favorecer grupos políticos, um fantasma antigo em democracias com esse modelo.
No final das contas, o Distrital Misto é a mais recente panaceia eleitoral a desembarcar no Congresso, apoiada por figuras de peso do Judiciário e do Legislativo. O debate, que tramita na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), é a repetição de uma novela que se arrasta desde 2017. O que realmente muda é a urgência e o cinismo do argumento: vender um controle inexistente ao eleitor para, na prática, garantir o controle total da máquina pelos partidos. A próxima eleição, se o projeto for aprovado, não será sobre a força dos votos, mas sobre o poder das canetas que rabiscam a lista fechada.





