Recife põe a História em liquidação: o Centro Antigo vira Condomínio S.A.

​A "Degradação" do Santo Antônio agora é um peoblema de gestão que a iniciativa privada, milagrosamente, vai solucionar em 30 anos.

Compartilhe o Post

​O Centro Histórico do Recife, um autêntico relicário de pedras e memórias, habituado a ser cenário de filmes, de fantasmas a agentes secretos, prepara-se agora para seu papel mais disruptivo: um reality show de concessão urbana. A Prefeitura da capital pernambucana anunciou o projeto “Distrito Guararapes”, uma ambiciosa Parceria Público-Privada (PPP), desenvolvida com o auxílio do BNDES, que promete resgatar 14 hectares do bairro de Santo Antônio da temida “degradação” por R$ 300 milhões em investimentos. A fórmula mágica? Entregar a gestão de parte do patrimônio, incluindo 35 quadras e 14 imóveis ociosos, a um único CNPJ por três décadas.

​A narrativa oficial é clara: onde o poder público falhou por anos em manter a limpeza, a ordem e a ocupação, o pulso do mercado fará a limpeza, tanto literal quanto, ironicamente, social. O secretário municipal de Planejamento, Felipe Martins Matos, nega o termo “privatização”, mas a lógica é inconfundível: concentrar a manutenção urbana em um único gestor privado, que terá o “estímulo” de ver a área bem cuidada para, veja só, vender 873 novas unidades habitacionais.

No epicentro do projeto está a conversão de 12 imóveis desapropriados (a maioria oriundos de espólios e massas falidas, a real “joia” arquitetônica da decadência) em apartamentos de cerca de 35 m². O detalhe que acende o sinal vermelho é o preço: unidades estimadas em R$ 310 mil, com um metro quadrado que supera a média do mercado recifense, segundo apurou a imprensa especializada local.

 

Embora 873 unidades sejam atreladas ao programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), a maior parte (66%) se destina à Faixa 3, voltada a famílias com renda mensal bruta de até R$ 8,6 mil, e uma porção menor à Faixa 4 (até R$ 12 mil). Ou seja, o projeto não visa a reocupação popular de baixa renda que um centro esvaziado demandaria; ele convida uma nova classe média a colonizar o coração da cidade, garantindo que o investimento privado se pague com margens de lucro imobiliário.

Avenida Guararapes, quando tinha seu charme, na década de 1970. Hoje há um monstrengo do BRT no meio.

O concessionário vencedor não reformará apenas casarões. Ele também entregará 5 km de ciclovias, novas estações BRT, uma cinemateca e, pasmem, um “palco flutuante para apresentações culturais sobre o Rio Capibaribe”. Uma cenografia de modernidade e efervescência cultural, pronta em seis anos, para disfarçar o mecanismo de deslocamento em curso.

A preocupação de historiadores e urbanistas é latente. Mariane Zerbone (UFPE) e Pedro Valadares (UPE) alertam para o risco de a especulação imobiliária, o motor da concessão, “tomar conta da história” e “expulsar” aqueles que já possuem vínculos culturais com o local.

O centro, classificado como Zona Especial do Patrimônio Histórico, terá suas regras de preservação mantidas, garante a prefeitura. Mas a história recente do urbanismo brasileiro é pródiga em exemplos onde a “requalificação” patrocinada pelo capital se torna um eufemismo para gentrificação. O Distrito Guararapes parece seguir o manual: primeiro, desvaloriza-se o que é público pelo abandono; depois, valoriza-se o que é privado pelo investimento, cobrando o preço do resgate na porta dos moradores originais.

​Ao final de 30 anos, o Recife talvez tenha seu centro arrumado e limpo, gerido com a eficiência de um shopping center. Mas a pergunta que paira no Capibaribe é: a quem pertencerá, de fato, essa história resgatada? O Distrito Guararapes é a prova definitiva de que, no Brasil, a solução para a degradação pública é sempre a mesma: privatizar os lucros e socializar as consequências.

Com certeza os donos da história continuarão sendo.

Compartilhe o Post

Mais do Nordeste On.