​O pijama, a espada e o povo na calçada

​Dizem que a história é escrita pelos vencedores, mas no Brasil ela é frequentemente escrita pelos que acordaram de mau humor.

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Dia 15 de novembro, celebramos a Proclamação da República. Ou melhor, celebramos o feriado que ela nos legou, porque se dependesse do entusiasmo cívico original, estaríamos todos trabalhando normalmente. A verdade, despida dos óleos sobre tela e dos hinos pomposos, é que a nossa República não nasceu de um parto heroico; ela nasceu de uma fofoca bem contada e de uma crise de falta de ar.

Vamos aos fatos, pois a realidade é a maior das sátiras.

​Imagine a cena no Rio de Janeiro, 1889. Não houve Queda da Bastilha, não houve guilhotina, nem massas furiosas com tochas. O que houve foi o Marechal Deodoro da Fonseca, um senhor idoso, monarquista convicto e amigo pessoal do Imperador, sendo arrancado da cama no meio da noite. Ele estava doente, com uma dispoeira (falta de ar) terrível, provavelmente sonhando com uma canja de galinha.

Mas a política brasileira, essa máquina de moer paciência, não dorme. Benjamin Constant e a turma da “mocidade militar”, os precursores do grupo de WhatsApp, espalharam a fake news (sim, a República nasceu de uma fake news) de que o governo imperial mandaria prender Deodoro.

O velho Marechal, ferido em seu orgulho (e não em seus ideais republicanos, que eram inexistentes), vestiu a farda por cima do pijama, montou num cavalo que devia estar tão confuso quanto ele, e foi para o Campo de Santana.

E o povo? Ah, o povo…

Aristides Lobo, uma testemunha ocular da história, cunhou a frase que deveria estar na nossa bandeira no lugar de “Ordem e Progresso”: “O povo assistiu a tudo bestializado”.

As pessoas olhavam aquela movimentação de tropas e pensavam: “Que bonita parada militar! Será que é aniversário do Imperador? Devo tirar o chapéu?”. Ninguém sabia que o regime estava mudando. O brasileiro acordou súdito de Pedro e foi dormir cidadão de Deodoro sem ter assinado um único papel, sem ter gritado um único slogan, sem ter quebrado uma única vidraça. Foi um golpe de Estado feito “entre amigos”, uma troca de turno na gerência da fazenda.

 

Dom Pedro II, o intelectual barbudo que lia em hebraico e preferia museus a quarteis, recebeu a notícia da sua demissão como quem recebe uma conta de luz alta: com resignação e tristeza, mas sem escândalo. Foi despachado para a Europa na calada da noite, para que o povo, sempre esse perigo latente, não se comovesse com a partida do “velhinho”.

E assim se fez a República. Uma coisa pública (res publica) feita de forma privada.

Cento e trinta e tantos anos depois, olhamos para trás e vemos a ironia fina. Trocamos um imperador humanista por uma sucessão de marechais autoritários e oligarcas do café. Prometeram a liberdade, entregaram o Estado de Sítio. Prometeram a democracia, entregaram a política do café com leite.

Hoje, ao olharmos para a data, fica a reflexão crítica: a República brasileira foi proclamada para o povo, mas nunca com o povo. Continuamos, muitas vezes, assistindo às manobras de Brasília “bestializados”, achando que é apenas uma parada militar, sem entender que, lá em cima, os cavalos e os cavaleiros trocam de lugar, mas a sela continua apertada nas mesmas costas de sempre.

Viva a República! Ou, pelo menos, viva a folga que ela nos proporciona para refletir sobre o absurdo que é a nossa normalidade.

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