A socióloga Maria Alice Setúbal, a “Neca”, doutora em Psicologia da Educação, faz um diagnóstico que merece mais que ares de constatação, exige um soco na mesa: a cultura, essa entidade plural e onívora, surge como um último suspiro de sanidade em tempos de barbárie. O texto, publicado sob o título “A cultura como mediadora em tempos difíceis”, é um mea culpa sutil de uma elite esclarecida que, de seu mirante, observa a catástrofe social da impunidade generalizada e da falta de capacidade de indignação.

Setúbal desanca o “individualismo que prevalece em maior parte das discussões políticas” e a tal “superficialidade” que, convenhamos, é a embalagem do produto ideológico dominante: o narcisismo de mercado. Essa superficialidade, que ela classifica como “sintoma da pobreza de referências culturais”, não é um mero deslize de estilo, mas o fosso que engole a “coletividade” em nome do deleite particular.
No entanto, há uma pitada de otimismo quase quixotesco. A autora, citando o projeto “Percepções sobre as desigualdades no Brasil” (do Observatório Fundação Itaú, com apoio do BNDES), agarra-se ao dado de que 81% das pessoas entrevistadas “consideram a cultura como um vínculo fundamental na sua relação com a comunidade”. É a cultura, a boia de luxo atirada no naufrágio social, o último reduto de esperança para “abrir novos espaços e construir novas hegemonias”.
O sarcasmo mora na constatação: a cultura é a mediadora, o caminho que “acolhe valores e constrói sentidos” exatamente quando a política oficial e a economia de cassino destroem sistematicamente esses valores e desmantelam qualquer sentido coletivo que não seja o lucro. Neca Setúbal, com sua bagagem acadêmica e sua posição estratégica no Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta, sabe que o grito pela “pluralidade” e pelo “diálogo da sociedade com a cultura” é um apelo de Sísifo.
Afinal, a busca por “encontros, de apreciação da beleza e de sentidos”, citando a própria autora, soa como um bálsamo aplicado sobre uma ferida que exige sutura profunda e não apenas pomada. A cultura, neste cenário, corre o risco de ser apenas o espetáculo da resistência, a decoração intelectualmente correta de um declínio que a própria Setúbal admite. Édouard Glissant é citado como a bússola poética da relação entre o imaginário e a troca, mas será que o cidadão médio, engolido pela realidade da bala perdida e do prato vazio, tem tempo ou estômago para a dialética? A cultura, sim, é fundamental, mas o banquete dela ainda é caro e elitizado demais para salvar a “coletividade” da indigência. Que bom, no entanto, que alguém ainda se dê ao trabalho de lembrar.