A fé no palco e o limite da releitura: o caso Cláudia Leitte

​A substituição de saudações ao Candomblé por termos cristãos em hits de Carnaval abre um debate jurídico inédito sobre racismo religioso e a integridade do patrimônio cultural baiano.

Compartilhe o Post

A liberdade artística costuma ser o porto seguro de intérpretes que desejam imprimir marcas pessoais em suas performances. Contudo, quando essa “personalização” toca em feridas históricas de apagamento cultural, o caso migra do entretenimento para os tribunais. O Ministério Público da Bahia (MP-BA) formalizou uma ação civil pública contra a cantora Cláudia Leitte, exigindo uma indenização de R$ 2 milhões por dano moral coletivo. O estopim foi a alteração da letra de “Caranguejo”, clássico do axé music, onde a menção a Iemanjá foi suplantada pelo nome de Yeshua.

Para os promotores da Promotoria de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa, o ato não é apenas uma escolha estética ou uma manifestação de fé individual da artista, que é cristã declarada. A tese jurídica sustenta que a modificação sistemática de termos ligados às religiões de matriz africana em canções que compõem o imaginário popular baiano configura uma forma de desvalorização e invisibilização.

Ao trocar a “Rainha Iemanjá” pelo “Rei Yeshua”, a cantora estaria, na visão do MP, promovendo um apagamento simbólico de divindades que são pilares da identidade cultural do estado. O processo destaca que tais obras musicais, embora performadas por indivíduos, tornam-se patrimônio imaterial, e sua alteração para fins de proselitismo ou exclusão religiosa fere o direito difuso à diversidade.

A ação é assinada conjuntamente pelo Núcleo de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural. Isso eleva a discussão: não se trata apenas de uma briga de palavras, mas de como a música popular é utilizada como ferramenta de manutenção, ou destruição, de memórias coletivas.

O montante de R$ 2 milhões em indenizações deve ser revertido para o Fundo Estadual de Defesa dos Direitos Difusos ou para entidades que protegem e representam as religiões de matriz africana.

Este embate jurídico coloca o Judiciário brasileiro diante de um dilema contemporâneo: onde termina o direito de um artista de expressar sua religiosidade e onde começa o dever de respeitar a herança cultural de um povo que, historicamente, luta para não ter seus deuses silenciados nos espaços públicos. O desfecho deste caso poderá ditar novas regras para a preservação da memória no Carnaval, a festa que, por definição, deveria ser o espaço da coexistência, e não da substituição.

Compartilhe o Post

Mais do Nordeste On.