A tragédia, ensinam os antigos, é a matéria-prima da literatura de realidade. Mas no Brasil, a tragédia virou uma disciplina de sobrevivência, especialmente para o indivíduo que o autor René Bignon, com acerto ficcional, define como o que busca um lugar para “crescer sem dono”. É o moleque, não no sentido carinhoso, mas na acepção visceral: o sujeito que cheira a rua, a fogo e a uma disputa primal por espaço, ali, entre um rua e a tragédia particular da família desestruturada.

Esse ser, forjado no asfalto quente e na ausência de oportunidades estruturais, encarna o espírito nacional mais infame, citado quase como um código de honra às avessas na ficção: a Lei de Gerson.
Não se trata de uma peça jurídica, mas de um axioma cultural de efeito corrosivo: a norma não escrita que legitima levar vantagem em tudo, sobrepondo o benefício próprio a qualquer custo ético ou moral. O que começou como um slogan publicitário dos anos 70 para um cigarro, enraizou-se na psique nacional para descrever o oportunismo que vai do cidadão que fura fila ao político que sangra o patrimônio público. A Lei de Gerson não é o “jeitinho brasileiro” adaptativo; é a sua versão mais predatória, que nos últimos anos tem se mostrado não apenas um vício social, mas um imperativo de mercado e, pior, de sobrevivência.

É este espírito de luta nua e crua que se choca, de maneira satírica e implacável, com o calendário festivo.
Chega o final de ano, e o país que respira o oportunismo da Lei de Gerson se veste de caridade e panetone. A crônica das páginas já lidas, sintetizada no desenho de um garoto que reclama à “Caixa” e deseja um “Feliz Natal Apesar de Tudo,” capta a exaustão da data. A festa da generosidade é, ironicamente, o momento de pico da exclusão social.

Estudos econômicos, como os da Fundação Getulio Vargas (FGV IBRE), têm apontado repetidamente para a mesma estatística amarga: o Natal brasileiro é, historicamente, um amplificador da desigualdade, com a diferença na intenção de consumo entre as famílias de renda alta e baixa atingindo picos recordes.

Enquanto a fatia privilegiada planeja ceias fartas e presentes caríssimos, a maioria da população, aquela que vive com a renda comprimida pela inflação, vê a data como um lembrete cruel da sua inadequação. O valor médio dos presentes comprados pela faixa de renda mais baixa costuma despencar, transformando a época mágica em um período de vergonha e invisibilidade.
O moleque, que luta para não ter dono e para levar sua vantagem, e o garoto da caricatura, que protesta contra a caixa vazia, são faces da mesma moeda. O primeiro, tenta sobreviver à tragédia das ruas usando o cinismo como escudo. O segundo, confronta a hipocrisia do consumo que o exclui.

Em última análise, o Brasil de final de ano é um vasto palco onde a Lei de Gerson financia o Papai Noel. A desigualdade, que é a mãe da exclusão, obriga o excluído a abraçar o oportunismo para conseguir uma migalha. E o sistema, vestido em luzes pisca-pisca, o julga. A única novidade em tudo isso é que, a cada ciclo, a distância entre a tragédia e a piada de Natal só aumenta.





