Quando o orçamento vira arma: o nó da “emenda Pix” entre crime organizado e o poder público

Às vésperas da audiência convocada por Flávio Dino, investigações revelam que desvios via emendas parlamentares observam padrão de lavagem sofisticada.

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O Brasil assiste a uma inquietante metamorfose do desvio de recursos públicos: o orçamento parlamentar, antes instrumento de clientelismo e compra de apoio político, agora parece seguir rotas utilizadas por organizações criminosas para lavar dinheiro. No Maranhão, o assassinato de um agiota que operava com emendas não foi um caso isolado, é revelador do grau de captura que o Orçamento federal sofre.

Nesse contexto, o ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino convocou uma audiência pública para 23 de outubro, com foco no monitoramento das emendas Pix. A decisão sinaliza que o próprio STF reconhece a urgência de enfrentar fragilidades estruturais no controle desses repasses.

O Tribunal de Contas da União (TCU), por sua vez, já informa ter capacidade de rastrear cerca de 70% das transferências especiais (emendas Pix) no exercício de 2025, um avanço, mas que ainda deixa vastos espaços de opacidade. Instituições federais se mobilizam para firmar cooperações e planejar plataformas que consolidem a rastreabilidade.

Mas quem deve responder pela voracidade com que esses desvios ganharam perna? O governo federal, o Congresso, o TCU, ou as instâncias de controle ainda acossadas por limitações técnicas? Para complicar, há um passivo gigantesco a enfrentar: cerca de 35 a 40 mil emendas de 2020 a 2024 permanecem sem fiscalização satisfatória.

 

Entre “igrejas” e propinas

 

Fontes ligadas ao STF desconfiam de um curioso padrão: muitas das emendas não fiscalizadas são destinadas formalmente ao setor “religioso”. Alegações cruzadas sugerem que se trata de fachada para lavar recursos ilícitos. A lógica é cruelmente simples: o parlamentar embolsa até um terço, e a obra que se anuncia nunca sai do papel.

Um exemplo emblemático envolveu os deputados Josimar Maranhãozinho, Pastor Gil e o suplente Bosco Costa (PL). Eles estão sob acusação de cobrar propina de R$ 1,6 milhão para direcionar quase R$ 7 milhões em emendas a São José de Ribamar (MA). A investigação identificou uma “estrutura armada” para pressionar prefeitos; o agiota Pacovan, que emprestava o dinheiro para depois ser ressarcido com desvio de emendas, foi morto há cerca de 16 meses.

No plano nacional, a PF deflagrou recentemente a 6ª fase da Operação Overclean, com mandados de busca e apreensão em Salvador, Amargosa (BA) e Brasília, visando desvios de emendas, fraudes em licitação e lavagem de dinheiro. A ação, autorizada pelo STF, trata de movimentações estimadas em R$ 1,4 bilhão.

Um dos alvos já identificados foi o deputado Dal Barreto (União-BA), cujo posto de gasolina teria recebido recursos oriundos de emendas Pix indicadas por outro parlamentar.

Em 2025, PF, CGU e Receita também desarticularam outro núcleo que manipulava licitações e recursos de emendas, bloqueando R$ 85,7 milhões em bens.

 

A armadilha da rastreabilidade incompleta

 

Apesar de avanços recentes, o Brasil enfrenta um dilema grave: como julgar e punir condutas quando parte dos recursos sequer pode ser rastreada? No relatório de auditoria do TCU sobre transferências especiais, há alertas contundentes: os montantes passaram de R$ 621 milhões em 2020 para R$ 7,7 bilhões em 2024, totalizando R$ 19,2 bilhões liberados desde 2020, muitos deles sem clareza.

O relatório também aponta que quase 49% dos planos de trabalho dessas transferências sequer foram elaborados, requisito básico de transparência. Por isso, decisões do STF já estabelecem que novas emendas Pix só podem ser liberadas após aprovação prévia de plano de trabalho, incluído em plataforma como o Transferegov.

Mas o maior desafio segue sendo estes volumes de emendas antigas que se acumularam sem prestação de contas efetiva. A estrutura institucional ainda tenta se adequar para julgar casos pendentes, com recursos dispersos, de difícil rastreamento, cenário fértil para impunidade política.

 

Entre retaliações e padrões institucionais

 

O Congresso já tentou reagir: a famigerada “PEC da Blindagem” foi descrita por críticos como uma tentativa explícita de sepultar investigações. Embora derrotada no Senado, ela revela o grau de temor entre parcelas do Parlamento acerca de diligências da PF.

Para não perder espaço, o governo federal ensaia ameaças contidas: cortar emendas em ano eleitoral para minimizar risco político. Mas sem mapeamento preciso, a manobra pode gerar disfunções eleitorais e injustiças, justamente onde a opacidade mais prospera.

O Legislativo resiste a abrir mão de prerrogativas orçamentárias; o Executivo teme assombrar sua base na Câmara e no Senado. Enquanto isso, magistrados do STF articulam mecanismos de controle judicial sobre repasses orçamentários, mas esbarram em restrições constitucionais.

 

O que esperar da audiência pública

 

No dia 23, diante de representantes do TCU, CGU, AGU, PGR, Legislativo, bancos e instituições estatais, Flávio Dino buscará definir ritmo e governança do rastreamento das emendas. Será um momento decisivo: ou o Estado constrói uma arquitetura robusta de fiscalização, ou verá seguir a espiral entre emendas parlamentares e circuitos financeiros do crime.

Se a audiência não for acompanhada de compromissos práticos, cronogramas, transparência em tempo real, recursos técnicos e independência institucional, o esforço poderá se esvair. No radares da PF e do TCU, porém, muitos já cruzaram rotas suspeitas e o Brasil exige resposta à altura.

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