A ministra da Saúde, Nísia Trindade, enviou à cidade de Cabo Frio (RJ) R$ 51 milhões a mais do que o previsto em portaria que ela mesma assinou em dezembro passado.
A verba para Cabo Frio entrou na mira do Congresso depois de o Correio Manhã revelar que o filho da ministra foi nomeado secretário de Cultura da cidade. A contratação de Marcio Lima Sampaio aconteceu em janeiro passado, 21 dias após o dinheiro ser liberado.
Pelas regras do SUS (Sistema Único de Saúde), repasses para serviços de alta e média complexidade acima do teto estabelecido precisam ser autorizados por colegiados estaduais com representantes da área da saúde.
Para justificar o envio de R$ 55,4 milhões, a portaria 2.169/2023 cita quatro autorizações da CIB (Comissão Intergestores Bipartite) do RJ. Levantamento do UOL revela, contudo, que elas só dão aval para o repasse de R$ 4,6 milhões.
Procurado, o Ministério da Saúde alega “divergência” nos dados da portaria, mas diz ter tido autorização para o repasse. A pasta não explicou, contudo, por que o ato público segue sem correção quatro meses após a publicação no Diário Oficial da União.
Pouco mais de dois meses após a liberação da verba, a prefeita de Cabo Frio, Magdala Furtado, deixou o PL, de Jair Bolsonaro, ingressou no PV e anunciou que disputará a reeleição com o apoio do PT.
Advogados veem ilegalidade
Consultados pelo UOL, especialistas em direito público dizem que a ministra cometeu ilegalidade com potencial para ser alvo do TCU (Tribunal de Contas da União) e do MPF (Ministério Público Federal).
A partir do momento em que o próprio ministério tem uma portaria que não é fidedigna, você está descumprindo a lei orçamentária. E, ao não ser fiel com as informações, você está cometendo uma ilegalidade porque estamos falando de recursos públicos.
Edgard Leite, advogado especialista em direito público
Leite destaca que a portaria transfere recursos sem as devidas autorizações.
“Existe, no meu entender, uma total irresponsabilidade porque estamos no mês de abril e existiu tempo mais que suficiente para que providências fossem adotadas e, se não foram adotadas a tempo e a hora, qual é a razão?”, questiona Leite.
Se houve uma deliberação num valor que é uma fração daquilo que foi efetivamente autorizado, houve uma violação da prerrogativa. Os órgãos de controle terão que se manifestar. A consequência disso certamente será uma penalidade imposta pelo Tribunal de Contas. Não é uma mera formalidade.
Fernando Dantas, especialista em direito público
Ministério fala em ‘equívoco’
Em nota ao UOL, o Ministério da Saúde menciona novos números de autorizações da CIB do RJ para justificar o repasse 11 vezes maior do que o valor indicado na portaria.
O UOL constatou que, mesmo assim, os números apresentados não batem: permanece uma diferença desta vez da ordem de R$ 2,5 milhões a mais entre o que foi enviado e o que está autorizado.
“Esclarecemos que a liberação de recursos no valor de R$ 55,4 milhões, autorizada pela Portaria GM/MS nº 2.169, de 5 de dezembro de 2023, foi realizada em atendimento aos pleitos do município, conforme deliberado na Comissão Intergestores Bipartite do Estado do Rio de Janeiro por meio das Deliberações CIB-RJ nºs 7.567, 7.568, 7.553, 7.554, 7.572 de 13 de julho de 2023 e nº 347 de 30 de junho de 2023, até o dia 11 de julho de 2023.”
Após a publicação da reportagem, o Ministério da Saúde informou que todas as autorizações do CIB-RJ chegam ao valor enviado, mas voltou a reconhecer que publicou um ato com informações inverídicas.
A reportagem identificou que a portaria traz outra inconsistência. O documento cita uma CIB do Amazonas na deliberação sobre a verba para o Rio. À reportagem, o ministério disse que houve um “equívoco”, “um erro material”.
As CIBs –que reúnem representantes das secretarias estaduais e municipais de saúde– têm como objetivo garantir impessoalidade nas decisões do ministério relacionadas à alocação de verba. Essas decisões são resultado de discussões coletivas, visando uma distribuição equitativa e eficiente dos recursos da pasta.
Ou seja, para enviar a verba a mais a Cabo Frio, Nísia precisava ter seguido o que foi definido pela CIB do RJ. A portaria 2.169/2023 evidencia portanto descumprimento de normas do ministério.
Portas abertas em Brasília
Cabo Frio foi a única cidade do RJ beneficiada pela portaria com o aumento da verba para alta e média complexidade –que envolve exames complexos, com emprego de tecnologia.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), pediu à ministra que explicasse ao Congresso quais os critérios para atender algumas cidades em detrimento de outras. A justificativa não convenceu, o que agrava o desgaste político da ministra.
Antecessor do filho da ministra no cargo, João Felix disse ao UOL que soube da demissão da Secretaria de Cultura pelo Diário Oficial do Município. “Ninguém nunca falou comigo.”
Militante da área da cultura há duas décadas, ele diz que nunca ouviu falar do envolvimento de Marcio Sampaio com o setor na cidade. A família da ministra vive no Rio, não em Cabo Frio.
André Bandeira, assessor especial da prefeita Magdala Furtado, afirma que partiu dele o convite para nomeação do filho de Nísia.
O Marcio é meu amigo. A gente precisava de um gestor que tivesse experiência de gestão na cultura.
André Bandeira, assessor especial em Cabo Frio
Informado de que é a primeira vez que o filho da ministra assume um cargo dessa natureza, Bandeira afirmou: “Ele tem formação, tem pós-graduação. É um cara totalmente aberto”.
Desde que o filho da ministra foi nomeado, no último dia 5 de janeiro, ele foi recebido pelo presidente Lula (PT), três vezes pela ministra da Cultura, Margareth Menezes, e pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
A ministra, inclusive, acompanha o filho em agendas, como a 4ª Conferência Nacional de Cultura, um evento sem qualquer relação com a pasta da Saúde.
O antecessor de Sampaio no cargo afirma que nunca foi recebido em Brasília no período que ficou na pasta. Até mesmo secretários de capitais têm dificuldade para conseguir agendas com tantas autoridades em Brasília.
Investigação em Cabo Frio
Da reunião no gabinete de Nísia até a verba entrar nos cofres da Prefeitura de Cabo Frio, passaram-se apenas 16 dias.
Dos R$ 55,4 milhões que entraram, R$ 31 milhões foram movimentados entre os dias 15 (data da reunião com Nísia) e 29 de dezembro. Depois disso, o restante do dinheiro não foi mais usado: os R$ 24,4 milhões que deveriam ser aplicados para reduzir filas de exames e cirurgias estão parados na conta da prefeitura.
Uma CPI da Câmara Municipal de Cabo Frio diz que a maior parte do dinheiro movimentado foi para quitar folha de pagamento, e não empregado na saúde.
Os recursos também foram usados para contratar uma empresa para fornecer aventais impermeáveis por R$ 1,1 milhão. A prefeitura fez uma adesão a uma ata do governo de Sergipe para acelerar a compra.
No contrato obtido pelo UOL, não há informações sobre quantos aventais foram adquiridos, mas considerando os valores cobrados em Sergipe daria para comprar 300 mil aventais. Para especialistas, o número é desproporcional, considerando que Cabo Frio tem quatro hospitais e duas UPAs.
“A nomeação do filho da ministra é o que causou estranheza. Foi logo em seguida. Uma pessoa que não tem ligação nenhuma com a cidade, embora seja músico. E tem mais: no nosso entendimento, essa verba não poderia ter sido usada para custeio [no caso, pagamento de salários]. É o que estamos investigando”, disse o presidente da CPI, vereador Josias da Swell (PL).
Outro lado
O ministério nega qualquer relação entre a contratação do filho da ministra e a liberação da verba pública.
Questionada, a pasta não informou quem solicitou que Nísia recebesse a prefeita de Cabo Frio no Ministério da Saúde.
Após pedir prazo de dois dias para responder à pergunta do UOL, o ministério afirmou: “Diariamente, a ministra recebe visitas de prefeitos e governadores e autoridades para tratar de diversos assuntos relacionados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Essas audiências são solicitadas pelas autoridades e intermediadas pela assessoria parlamentar da ministra. Ao todo, em 2023, a ministra recebeu 113 autoridades do executivo estadual e municipal.”
O ministério também nega ter beneficiado Cabo Frio. “O município possui uma população de mais de 200 mil habitantes, sendo a 14ª cidade mais populosa dentre os 92 municípios que compõem o estado do Rio de Janeiro”, afirmou a pasta, em nota.
A pasta também disse que “tem trabalhado para tornar mais equânime a alocação de recursos para custeio da rede de atenção à média e alta complexidade no âmbito do SUS”.
O UOL tentou contato com a Prefeitura de Cabo Frio por meio da sua assessoria de imprensa, mas não obteve resposta. O espaço segue aberto.